O Brasil em uma encruzilhada climática

Análise

Entre os dias 22 e 23 de abril, líderes mundiais se reunirão, ainda de forma virtual, para uma cúpula mundial sobre a questão climática. Anunciada pelo governo Biden, que colocou o tema de mudanças climáticas como prioridade em seu governo - uma mudança radical se comparada ao Trump -, a cúpula pretende reunir diversos países para debater a mobilização de esforços para a redução das emissões de gases de efeito estufa nas linhas do Acordo de Paris. Quarenta líderes mundiais foram convidados, incluindo o Brasil.

 

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Uma das palavras-chave para este encontro é ambição. Jornalistas e negociadores que acompanham o debate climático vêm mencionando os esforços americanos em apresentar metas mais ambiciosas para redução das emissões. Seria uma forma de reposicionar o país na liderança global do combate às mudanças climáticas, além de acenar ao multilateralismo, pois se pretende que os resultados dessa reunião contribuam para as negociações da COP 26, Conferência das Organização das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que ocorrerá no final do ano. 

Neste cenário, há uma expectativa muito grande sobre o papel do Brasil dentro da cúpula. Isto porque, desde a entrada do governo Bolsonaro, o país vem tomando atitudes negacionistas e preocupantes no campo climático e ambiental. Se por um lado, o governo se distancia cada vez mais do cumprimento das metas do Acordo de Paris, por outro temos uma série de ações e omissões no ministério do Meio Ambiente (denunciadas por organizações da sociedade civil e até por servidores do meio ambiente) que opõe o governo dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais, entre outros. Como consequência, o país, que era considerado uma liderança global no tema, acumula posturas cada vez mais isolacionistas, do estímulo a um desmonte institucional, afetando diretamente órgãos como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade  (ICMBio), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) .

Entretanto, a eleição de Joe Biden a presidência dos Estados Unidos, e a definição de que o tema das mudanças climáticas seria prioridade em seu governo aumentou a pressão em cima do governo brasileiro. Em carta enviada em fevereiro ao governo brasileiro, o presidente Biden cobrou um compromisso maior do país na preservação ambiental e em metas mais ambiciosas sobre as questões climáticas. 

"Espero ver compromissos do seu governo em aumentar a ambição sobre a questão climática antes da cúpula de líderes pelo clima que eu vou organizar em 22 de abril, enquanto trabalhamos para proteger nossos recursos naturais e tirar milhões da pobreza por meios sustentáveis", escreveu Biden.

Dentro deste contexto, o governo começou a tomar medidas para conter danos e aparentar um certo comprometimento. A substituição do ministro das Relações Exteriores (que foi recentemente exonerado), Ernesto Araújo, que considerava as mudanças climáticas como ‘uma ideologia’ criada pela ‘esquerda’ pode ser considerada um aceno nesse sentido. Assim como a confirmação da delegação que acompanha a cúpula, que será composta pelos ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de Relações Exteriores, Carlos Alberto França, e do próprio presidente Bolsonaro. Além disso, de acordo com Itamaraty, em resposta à revista Crusoé, o país levará a mensagem de que a mudança climática é uma prioridade do governo brasileiro e que irá se manifestar na cúpula  “a respeito das prioridades nacionais em temas afetos à mudança do clima, como a transição energética e o aumento da participação de fontes renováveis na matriz energética mundial”. 

Apesar da mudança de tom, ainda há muitos paradoxos e preocupações na questão ambiental, quando observamos as ações. A recente criação do programa “Adote 1 Parque”, cujo objetivo seria a promoção da conservação, recuperação e melhoria de unidades de conservação por pessoas físicas e jurídicas (nacionais ou internacionais), foi duramente criticado por grupos da sociedade civil, como o Grupo Carta de Belém. Em um diálogo com parlamentares brasileiros sobre o programa, membros desse grupo apontaram que “o projeto Adote um Parque traz a exclusão total dos povos e o processo de gestão participativa.” Lembram “que não houve participação nos conselhos deliberativos ou conselhos consultivos. E que o projeto “também desrespeita acordos firmados como a adoção pelo Brasil, em 1989, à Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Decreto 6040 do desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais, e tampouco respeita o direito real de uso das populações.” Além disso, “por apenas 50 reais/10 euros por hectare, o governo faz uma verdadeira pechincha com os bens comuns do Brasil”, diz o Grupo em carta aos parlamentares. (para mais informações, leia a carta neste link). Como não remeter este projeto à música de Raul Seixas, na qual era cantado: “A solução pro nosso povo eu vou dá. Negócio bom assim ninguém nunca viu. Tá tudo pronto aqui, é só vim pegar. A solução é alugar o Brasil! ”

E este é apenas o mais recente caso. No campo interno, o ano de 2020 trouxe resultados muito negativos no combate ao desmatamento e na proteção ambiental. O desmatamento na Amazônia foi 30% maior, em comparação com 2019. E no Cerrado, o aumento foi de 13% comparado a 2019.  Além disso, denúncias sobre desmonte na área ambiental continuam a ocorrer, mesmo durante a pandemia. De acordo com o relatório “Passando a Boiada”, do Observatório do Clima, houve “desde a flexibilização do controle da exportação de madeira até a tentativa de liberação de petróleo em áreas sensíveis, passando pelo garrote orçamentário, pelo loteamento de órgãos ambientais com policiais militares sem conhecimento técnico e pela proposta de extinção do Instituto Chico Mendes, entre vários outros.” Essas ações afetaram órgãos como o IBAMA e ICMBIO, além de instâncias como o CONAMA, sem reuniões desde setembro do ano passado. Um ano após a fatídica reunião em que o Ministro do Meio Ambiente sugeriu “passar a boiada”, os números são a maior comprovação da atual situação ambiental.  

No campo internacional, as preocupações se mantém, principalmente com a apresentação, cinco anos após o Acordo de Paris, do novo compromisso individual de redução de emissões de gases de efeitos estufa, revisando suas NDCs (Contribuições Nacional Determinadas). Apesar de afirmar a neutralidade de emissões para 2060, as novas metas brasileiras foram consideradas pouco ambiciosas, pois apenas reafirmaram percentuais antes apresentados ou indicados. E ainda alterou a referência das emissões do ano base, o que na prática diminui a meta de redução das emissões. Isto pode ser considerado uma grave violação das regras do acordo de Paris, pois violaria o princípio do não-retrocesso. Ou seja, cada NDC deveria ser uma evolução, com maior ambição que a anterior. 

O documento ainda traz um agravante, ao condicionar o cumprimento das metas  “ao funcionamento apropriado dos mecanismos de mercado definidos pelo Acordo de Paris”, o que na prática coloca a proposta de neutralizar as emissões até 2060 como uma intenção, e não um compromisso. E ainda olha para o mercado de créditos de carbono como possibilidade para obter os recursos que alega serem necessários para o cumprimento das metas. 

Até o momento, não há perspectivas de mudança nas ações para 2021. O orçamento de 2021 traz uma redução drástica para o Ministério do Meio Ambiente, em especial no combate ao desmatamento e ao fogo. De acordo com o Observatório do Clima, apenas R$ 1,72 bilhão estão previstos para o Ministério e seus dois órgãos ambientais (IBAMA e ICMBio) para cobrir todos os gastos, inclusive os obrigatórios. Isto significa uma redução de quase R$ 1 bilhão de reais se comparado ao ano de 2020, em que estava previsto R$ 2,66 bilhões. As consequências desse processo já podem ser sentidas neste ano. O mês de março detectou um aumento de 12% comparado ao ano anterior.

É sob este contexto interno e internacional que o Brasil chega a Cúpula de Clima, proposta pelo governo Biden. Em falas para jornalistas, o Ministro de Relações Exteriores deixou claro a intenção de pedir US$ 1 bilhão para combater o desmatamento na Amazônia, apresentando onde seria necessário tal investimento, além de reafirmar que somente com tal recurso seria possível o compromisso de redução do desmatamento. Para grupos da sociedade civil, esta é uma tentativa de se buscar o prestígio do governo estadunidense para si, sem que haja uma modificação efetiva nas políticas e ações do governo. E para mais de 200 organizações brasileiras que assinaram uma carta endereçada ao governo Biden, o presidente americano deve escolher entre ser verdadeiro e honesto com suas palavras e propostas, ou emprestar seu prestígio político e financeiro ao governo Bolsonaro. Não há como fazer os dois (para ler a integra da carta, acesse aqui).

Neste mar de incertezas, outras ações vão se desenhando. Vinte e dois governadores estaduais, preocupados com a emergência climática global, endereçaram uma carta ao presidente Biden propondo uma parceria para ações de preservação ambiental, além de estabelecer um canal de interação com o governo estadunidense para avançar em passos práticos. Grupos indígenas, como a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) denunciou internacionalmente as ações do governo brasileiro e solicitou uma reunião com representantes do governo americano, sendo recebidas no último dia 13. 

A expectativa reina agora sobre como o governo Biden irá responder a todas essas iniciativas, e como será o diálogo (ou até possível acordo) com o governo brasileiro. A experiência brasileira com o Fundo Amazônia durante o governo Bolsonaro, pode ser uma ilustração do que não pode ser feito. Com bases em suspeitas e alegando uma reformulação na gestão, o governo federal extinguiu o comitê orientador do Fundo Amazônia (Cofa), que é o principal órgão de governança e controle social do fundo (e que estabelecia critérios para o emprego dos recursos). Os países apoiadores do fundo, descontentes com as mudanças promovidas, suspenderam os repasses de novas parcelas. Com isso, de acordo com o Observatório do Clima, há cerca de R$ 2,9 bilhão paralisados, sem que se possa aprovar nenhum projeto novo, como resultado de mudanças na estrutura de governança do Fundo realizadas sem a anuência dos países doadores. 

Há uma oportunidade, neste mês de abril, para exigir seriedade, comprometimento e uma mudança de rumo. Somente com diálogo, participação da sociedade civil brasileira, - em especial os povos indígenas, quilombolas e tradicionais, - e controle social, que iniciaremos uma alteração no curso dessas políticas. São ações, mais do que palavras, que podem recuperar a confiança e as boas relações com os países. Caso contrário, continuaremos a navegar pelos mares da desconfiança, rumo a um cenário de desolação, em uma espécie de “mad max” ambiental.